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O Modelo mesopotâmico; O Imperialismo necessário;
Imperialismo e Estoicismo; Imperialismo e Cultura Ocidental; Originalidade
da América Latina.
1. Desde os tempos em que surgem as primeiras cidades, por
volta de oito mil anos atrás na Mesopotâmia, a história
da humanidade se identifica com a história do imperialismo. No
momento em que uma cidade se torna bastante próspera para poder
subjugar outra e assim criar mais riqueza para si, ela não hesita
em fazer a guerra. Mas tarde a nação faz o mesmo, e assim
fazem hoje os blocos internacionais. Eis a regra. Por isso muitos livros
de história nada mais são que uma longa listagem de guerras
e lutas pelo poder político.
Vale a pena olhar de mais perto o caso do imperialismo mesopotâmico,
o primeiro e que virou modelo para os outros. Como já escrevi acima,
é na Mesopotâmia, um vale fértil em torno de dois
rios portentosos, o Tigris e o Eufrates, e que se estende por milhares
de quilômetros, que surgem as primeiras cidades e a primeiras guerras
de expansão. Decerto, há também o imperialismo egípcio,
com as dinastias de faraós se sucedendo de forma ininterrupta durante
milênios. Mas, malgrado as pirâmides mundialmente conhecidas
do Egito, o imperialismo mesopotâmico é mais impressionante.
Estamos relativamente bem informados acerca dele através de incisões
cuneiformes inscritos em tabuletas de barro que a arqueologia hoje desenterra
em grande quantidade em todo o mencionado vale. Essas tabuletas contêm
preciosas informações sobre a maneira em que os camponeses
da Mesopotâmia interpretam sua vida. A história que elas
contam é quase invariavelmente a história dos deuses, cheia
de bebedeiras e combates, vitórias e grandezas, verdadeiro espelho
da vida dos grandes da terra. Não faltam deuses nem deusas, nem
no céu nem embaixo da terra, nos infernos. Contam-se umas mil e
oitocentos divindades, com as quais o camponês dialoga submisso
e cheio de reverência. A única coisa que ele pode esperar
de seu deus (de seu senhor) é a generosidade, uma ajuda na extrema
necessidade. Mas ele costuma viver cheio de medo. Uma tabuleta descreve
a deusa mãe do rio infernal, criadora de toda vida, da seguinte
forma:
Ela gerou serpentes gigantes
com dentes agudos, mandíbulas impiedosas;
em vez de sangue, ela encheu seus corpos de veneno
e vestiu de espanto os dragões furiosos,
os aureolou de esplendor e os tornou iguais aos deuses .
Quando, em 1843, os arqueólogos começam a
cavar buracos no Iraque e em toda extensão do vale para reconstituir
os palácios de Assur, do rei Sargão e de outros, eles descobrem
um fausto colossal e sem comparação na história do
mundo. Diante desses palácios, Tebas, Menfis e Karnak no Egito
ficam bem atrás. Nem os imperadores da China nem os da Índia
nunca demonstraram tão suntuosa arrogância. O poder titânico
desses governantes revela-se de forma terrifiante nos dez hectares com
209 salas do palácio de Sargão. Quem entra aí se
sente, ainda hoje, pequeno e oprimido. Escadarias e portais majestosos,
salas enormes e muros intransponíveis. E ao lado disso só
se enxergam sinais de conquista, violência e crueldade. É
o touro da Suméria ao lado do dragão da Babilônia
e do leão da Assíria (só falta a águia dos
atuais americanos). Aliás, a história registrada da Mesopotâmia
é isso mesmo: uma sucessão infindável de guerras,
um rei derrubando outro e conquistando um trono logo depois ocupado por
outro. Os reis só descansam quando lavam as armas ensangüentadas
no Golfo Pérsico.
Uma das expressões arquitetônicas mais eloqüentes do
imperialismo mesopotâmico se encontra nas construções
verticais que durante três mil anos caracterizam o panorama mesopotâmico.
Os assim chamados ziggurats são imensas torres construídas
com tijolos feitos com o barro do rio, construções precárias
que aparecem ao arqueólogo como montículos sobre a paisagem.
O mais famoso é a assim chamada ‘torre de Babel’, que
impressionou vivamente escritores bíblicos (Gn 11, 1-10) e viajantes
da antigüidade. A construção tem sete pisos (o primeiro
piso tem 33 metros de altura), num total de noventa metros. A base retangular
tem igualmente noventa metros. Foram usados 85 milhões de tijolos
para a sua construção. O grego Heródoto o descreve
em 458 aC e o conquistador macedônio Alexandre já o encontra
em ruínas, no ano 330 aC. Estrabão manda escavar os escombros
por dez mil soldados mas só encontra tijolos amontoados. Os ziggurats
mostram o desejo humano de se penetrar no céu. A idéia é
a de uma escada que vai até o céu. Jacó sonha com
essa escada (Gn 28) após visitar a terra de seu avô Abraão,
um mesopotâmico. A imagem do assalto ao céu habita as mentes
dos mesopotâmicos (a torre de Babel), em seguida dos judeus (o templo
de Salomão), dos cristãos (a cúpula da basílica
de São Pedro em Roma), os burgueses vencedores do século
XIX (a Torre Eiffel em Paris) e finalmente as torres gêmeas do World
Trade Center em Nova Iorque, com mais de quatrocentos metros de altura.
Tudo isso é sinal de um processo praticamente inalterado na consciência
humana durante muitos milênios.
Para o imaginário imperial, o mundo é uma grande organização
templária. Cada deus, dos mil e oitocentos, tem seu templo. Com
o império babilônico emerge um deus maior que todos os outros,
Marduk, imagem celeste do imperador. Ele transforma Babilônia no
centro do mundo. Seu templo controla grande parte das terras melhores
do vale e cobre taxas sobre toda a produção. Os escravos
da terra na realidade são escravos do grande deus Marduk. O rei
tira seu poder, aos olhos do povo, pelo fato de ser o ministro dos templos.
Ele vai de cidade em cidade, ou seja de templo em templo .
2. É de se estranhar que o modelo imperialista, desde
suas primeiras experiências mesopotâmicas até a atualidade,
tenha recebido tanto apoio por parte de filósofos, políticos
e religiosos. Pelos menos aquelas filosofias, políticas e religiões
que foram amplamente divulgadas, sempre apoiaram a idéia imperialista.
Embora todos nós possamos observar no dia-a-dia que a grande maioria
das pessoas mantém uma sadia e alegre visão pacífica
da vida, observamos também que as filosofias mais divulgadas no
seio do povo são contrárias ao sentimento de felicidade
que o universo em que vivemos inspira e preferem uma visão sombria
e guerreira do mundo. Desde séculos atrás, os filósofos
mais críticos da Grécia consideram o imperialismo necessário
e a guerra inevitável. Um dos primeiros filósofos gregos,
Heráclito (entre os séculos VI e V aC), formula esse pensamento
numa frase lapidar: A guerra é a origem de tudo. Quando Prometeu
roubou o fogo do Olimpo, era para fundir ferro, fazer armas e com isso
deslanchar o progresso humano. A guerra cria o progresso. Tudo que o ser
humano cria tem sua origem na guerra, no ferro e no fogo: as cidades,
os países, as famílias, as propriedades, os ‘negócios’,
as corporações, a vida social, enfim. É verdade,
diz Heráclito, que as pessoas sofrem sob a lei da guerra, mas elas
têm que se lembrar que existe uma lei cósmica, além
de nossa observação, que visa criar a harmonia no universo
e que inevitavelmente acarreta a necessidade da guerra. O ferro governa
o mundo, a guerra é um mal necessário.
Eis o que dita a razão prática: Se quiser a paz, prepare
a guerra (si vis pacem, para bellum). Desde Platão até Bush,
Blair, Berlusconi, Chirac e Cia., os políticos pensam que o mundo
melhora fundamentalmente por meio da assim chamada «guerra justa»,
ou seja, de uma guerra realizada com o intuito de se conseguir a paz.
Já Platão e Aristóteles garantem uma sociedade de
bem-estar para todos, caso ela for dirigida pelos ‘aristocratas’,
ou seja, os mais dotados de razão prática. Aristóteles
chega a fazer uma experiência concreta com o jovem príncipe
Alexandre de Macedônia, de quem se torna preceptor e que ele procura
transformar num ‘aristocrata’ com a clarividência de
sua razão esclarecida. Resultado: numa campanha militar fulgurante,
Alexandre Magno forma em poucos anos um novo império, que simplesmente
perpetua as estruturas dos impérios que lhe antecederam, o assírio,
babilônico, faraônico. Séculos mais tarde os intelectuais
da Revolução Francesa pensam salvar o mundo através
da liderança do ‘povo’. É a democracia. Mas
por onde esse ‘povo’ tenha tomado o poder e instalado sua
‘ditadura’, o resultado foi frustração. Cansado
dessa ditadura, o cineasta russo Tarkovsky montou em 1981, no seu filme
Nostalgia, um comício de loucos e lunáticos numa praça
de Roma. Um dos loucos sobe no andaime colocado ao lado da estátua
eqüestre do imperador Trajano e grita: Eles (os sadios) não
têm sentimentos. O mundo vai mal porque eles não convidam
os loucos a participar de seus governos. No seu ensaio A Conquista da
América, Todorov diz mais ou menos o mesmo. Ele atribui a conquista
de México à astúcia de Hernán Cortés
que ‘brinca’ com a emoção dos chefes aztecas
por meio de pirotecnias bem montadas. Assim fez Hitler na Alemanha nazista
ao brincar com a imaginação dos seus compatriotas num jogo
de extrema racionalidade. E assim fez Pinochet no Chile, imagino. No plano
político, somos reféns de políticos sábios
e ‘filosóficos’, no sentido de Heráclito e Aristóteles.
3. Depois de Heráclito, surgem na Grécia diversas
filosofias que aplicam seu pensamento à educação
do povo. A mais influente dessas filosofias é o estoicismo, que
surge no século V aC e que portanto já acompanha a cultura
ocidental por dois mil e quinhentos anos. Muitos analistas do imperialismo
passam por cima de uma análise do estoicismo, seja porque não
acham que ele tenha algo a ver com imperialismo, seja por simples desconhecimento
do tema. O estoicismo é uma vulgarização filosófica,
mas mesmo assim tem uma influência fundamental na formação
do pensamento ocidental. Suas idéias são simples. No universo
tudo é planejado por uma Providência eficaz e incompreensível.
Os desígnios da Providência são insondáveis
mas sábios. As coisas da vida estão de antemão marcadas
por uma lei cósmica de inalcançável sabedoria. Os
seres individuais têm de se conformar com essa lei, elas têm
de carregar suas fardas com calma, pois o relógio do mundo já
marca tudo e regula os tempos e os lugares. As coisas estão previstas
desde sempre por um poder misterioso de imenso cuidado e que ama a ordem,
a regularidade, o compasso das coisas, o enquadramento das pessoas. O
problema principal está no desordenamento das assim chamadas ‘paixões’.
O homem escravo de seu corpo e de seus desejos é um infeliz, está
perdido. A salvação do homem consiste antes de tudo na libertação
dos impulsos inerentes ao corpo, entre os quais os mais poderosos são
de ordem sexual. O corpo é a prisão da alma, um peso para
a vida ‘espiritual’. O homem tem de se livrar pela educação,
ou seja, pelo controle exercido pela razão e conseqüente vontade
sobre os impulsos do corpo.
Os estóicos falam da ‘tirania das emoções’
e ensinam a fazer a guerra contra os ‘terroristas’ da psique
humana: as emoções e os sentimentos. O ser humano tem de
aprender a se guerrear a si mesmo, como quem faz um treinamento militar.
A pessoa pode chorar, mas tem que continuar o treinamento. É preciso
desconfiar dos sentimentos e sobretudo de suas raízes, as emoções.
As emoções nos colocam fora de nós, fora do eixo
normal da vida, num estado de menor controle racional. A emoção
é capaz de aumentar o batimento do coração, provocar
suor, rubor no rosto, diarréia, vômito, ela pode fazer com
que de repente fiquemos loucamente enamorados(as) ou resolvamos nos transformar
em bombas vivas. É bom se premunir e até modificar certos
hábitos para evitar emoções indesejadas e reações
espontâneas. E sobretudo: temos que cultivar verdades sólidas.
Ora, a verdade mais sólida é a verdade imperialista. Nada
mais racional, nada mais verificável historicamente. Não
tem jeito, a vida é assim. Quem conserva dentro de si a verdade
sólida tem o futuro na mão pois está absolutamente
convicto de que sua maneira de pensar é a única verdadeira
e que todas as demais são falsas. Não têm direito
de existir e devem ser combatidas. Isso, é claro, é o pensamento
único, o pensamento fundamentalista, o imperialismo ancorado na
mente. O que precisa ficar claro, em tudo isso, é o nexo entre
a educação estóica e a política. A procura
do gozo e da felicidade pessoal não combina bem com a ordem das
coisas, com o ‘status quo’ imperialista. O estoicismo, pelo
contrário, não cria problema nenhum para os governantes.
4. Esse estoicismo da razão e da vontade espalha-se
durante séculos por toda a extensão do universo helenizado
(que inclui o império romano) e atinge de cheio os núcleos
cristãos a partir da segunda parte do século II dC, quando
certas lideranças cristãs começam a perceber sua
relevância no combate a grupos cristãos de livre pensamento
(os heréticos). O primeiro escritor cristão de amplo trânsito
cultural, Clemente de Alexandria (primeira parte do século III
dC) escreve que o estoicismo combina bem com o cristianismo. Ele é
seguido pelos Padres da Igreja dos séculos seguintes, grandes intelectuais
a formar o pensamento cristão. Todos optam pelo banimento do princípio
do gozo e sua substituição pelo princípio da penitência.
Agostinho (século V dC) é profundo conhecedor do estoicismo
e o coloca como base de sua teologia. Sua influência é imensa
na formação da cultura ocidental. O mesmo se diga de Tomás
de Aquino (século XIII), que ensina que existe uma ‘lei eterna’,
uma lei que não estaria sujeita a nenhuma mudança, muito
menos às ‘veleidades’ das emoções.
Mas não só os religiosos se deixam levar pela filosofia
imperialista. Com os tempos modernos ela impregna a cultura ocidental
com um todo. A idéia seculariza-se com Hugo Grotius da Holanda
que ensina que não é preciso tomar em conta o que as pessoas
sentem, querem, sofrem e desejam, mas o que a ‘lei eterna da guerra
e da paz’ dita . Através de Tomás Hobbes e John Locke
essas idéias desembocam finalmente nas terríveis ideologias
do século XX como o nazismo, o estalinismo, o franquismo, o salazarismo,
e hoje, no limiar do século XXI, continuam mais vivas do que nunca.
Diante disso, a discussão sobre guerra e paz que foi realizada
um pouco por toda parte durante a segunda parte do século XX, provou
ser largamente insuficiente e até superficial. Os gritos de ‘guerra
nunca mais’ e ‘tortura nunca mais’ ganharam as ruas
mas ficaram nisso, por falta de argumentos definitivos. O grande ‘senhor
da guerra’ hoje obedece fielmente ao paradigma de Heráclito:
é precisa desviar o olhar das lágrimas das mulheres iraquianas
e das crianças afegãs e palestinas, fixar o olhar para Sua
Eminência a Guerra, pois ela obedece à ‘lei universal’
que rege o mundo. A doutrina de Heráclito continua pois inalterada,
após dois mil e quatrocentos anos.
5. Mesmo assim e de forma esperançosa, a América latina
conserva sua originalidade. Ela está sendo considerada, sobretudo
pelos artistas, como um continente não-estoico. Isso vem de longe.
Ao observar o jeito dos habitantes da costa brasileira em 1501, o famoso
viajante genovês Américo Vespucci anota no seu diário:
Eles parecem antes epicuristas que estóicos. E assim permanecem
até hoje, refratários ao estoicismo e às filosofias
sombrias em geral. O poeta chileno Nicanor Parra garante: No Chile el
saber y la risa se confundem. Outro poeta chileno, Pablo Neruda, escreve:
Ah! Se com uma gota de poesia e de amor
Pudéssemos aplacar a ira do mundo!
Ainda outro chileno, o historiador Maximiliano Salinas,
insiste por sua vez na originalidade ‘não-estoica’
do continente ao descrever o caráter próprio do cristianismo
latino-americano . Mas será que os amigos do riso e os refratários
ao estoicismo são também inimigos do imperialismo? Será
verdade que a vontade positiva a favor do riso, do gozo e da felicidade
é capaz de vencer as ‘armas da guerra’ que moram dentre
de cada um(a) de nós?
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