Agenda Latinoamericana-Mundial’2002

pág. 42

 

Povos Indígenas em diálogo com os demais povos da humanidade

As culturas indígenas retomam os valores humanos

 

Eleazar López Hernandez, del CENAMI: México

 

 

 

 

Introdução

Os povos indígenas da América e do mundo tem sido nos últimos 500 anos completamente desconhecidos das sociedades dominantes: ninguém nos via, ninguém nos ouvia. Não olhavam nosso rosto, não lembravam nem mencionavam nosso nome. Mas nos últimos anos tem-nos vindo a cabeça o ser indígena e por isso temos rompido os cenários públicos tal qual somos, com nosso rosto e coração próprios, com nossa palavra milenária. Os povos indígenas do mundo somos os descendentes e herdeiros do sangue e da cultura dos habitantes originários da terra; somos o vínculo mais seguro da população atual com suas raízes ancestrais. Os indígenas conservamos as semelhanças primeiras da espécie humana. Em nossas culturas se fala da sabedoria acumulada pelos séculos e milênios, que pode hoje ser referencia privilegiada para abrir melhores caminhos de futuro para todos. No diálogo para a vida os povos indígenas temos muito que contribuir e muito que receber.

 

Quantos indígenas existem?

A população indígena mundial nem se quer tem sido contada com veracidade. Os que fazem os censos não sabem com que critérios definir quem é indígena e quem não é, a sendo assim prevalecem estereótipos que nos equiparam com indigentes e em conseqüência facilmente reduzem ou ocultam deliberadamente nosso número e porcentagem. Em vários países da América tem sido afirmado inclusive que, Graças a Deus, já não há indígenas, porque ao escolarizar-se, ao falar a língua nacional e ao migrar para as cidades nossa gente se fez invisível para as estatísticas oficiais.

Contudo estudos sérios, que partem de critérios antropológicos culturais, reconhecem que no continente americano há pelo menos, cerca de 50 ou 60 milhões de indígenas (cf. DEMIS_CELAM 1987, Banco Mundial 1990, Johnstone 1993); na África habitam 15 milhões; nas ilhas do Pacífico Sul, Austrália e Nova Zelândia, 16 milhões, na Ásia oriental, 67 milhões; na Ásia ocidental, 7 milhões; e no Sudoeste Asiático, 80 milhões. (cf. Revista IWGIA, 1990). De modo que estamos falando de um total de cerca de 250 milhões de pessoas, em uma gama enorme de povos que se movem com esquemas de vida enraizadas em trabalhos culturais e espirituais anteriores a globalização atual. Uma quantidade e variedade humana que não é insignificante.

 

Imagem distorcida dos indígenas

Em muitos países, sobre todo o chamado Primeiro Mundo, se tem uma imagem distorcida dos indígenas. Por exemplo os Estados Unidos da América com respeito ao México, a gente do Norte pensa que os do Sul somos uns  "chapelzudos"  apáticos, que nos sentamos debaixo  de uma sombra sem se importar com nada do que passa a nosso redor. Nos consideram seres conformistas, acham que para nós tanto faz calor e frio, são a mesma coisa, a comodidade e a penúria, o dia e a noite, morrer ou viver.

Nada disso é verdade. É uma caricatura ideologizada de nosso ser. Os indígenas somos diferentes dos demais grupos humanos e temos razões em nossa história em nossas raízes ancestrais para nos mantermos diferentes. Nossa auteridade não foi compreendida e a  por isso é rechaçada em quase todos os âmbitos sociais considerando-a força desagregadora do conjunto. Todavia somos a parte mais profunda das sociedades nacionais, mesmo não tendo sido incorporados com orgulho e dignidade nos projetos das nações. Por isso nos mantermos diferentes  tem sido um ato de afirmação de nossa identidade negada e a exigência ante os demais do reconhecimento de nossos direitos coletivos.

 

Indígenas, homens e mulheres de palavra

Os indígenas sabemos falar, e o fazemos a sério. O Temos feito desde sempre; porque somos homens e mulheres de palavra. Sabemos que a palavra é a essência do ser indígena e do ser humano em geral. Somos fruto da palavra divina e da palavra de nossa comunidade. Juntos construímos o consenso, a palavra comunitária e logo a debulhamos como se debulha o grão do milhos, para comunicar nossa experiência humana. Falamos para levar ao outro nossa palavra, mas  também  sabemos calar para escutar a palavra do outro.

As formas indígenas de vida, ainda que pareçam primitivas  e arcaicas, contem valores que se referem a realidades fundamentais de nosso ser humano: o lugar supremo que ocupa a vida natural, animal e humana, o espírito comunitário com que homens e mulheres, velhos, adultos e crianças constróem e vivem o bem comum, a inter-relação com o mundo transcendente do sagrado, os espíritos e os mortos que dão sentido pleno a existência humana. Estes valores humanos estão sendo apagados do sistema educativo com que se forma as novas gerações para o mundo do mercado globalizado. Por isso as culturas indígenas podem construir e por em seu lugar esses valores da humanidade.

 

Indígenas, valentes opositores ao neoliberalismo

Os povos indígenas foram os primeiros a tratar de forma séria o assunto da globalização neoliberal. As organizações indígenas independentes, os organismo não governamentais de Direitos Humanos e os servidores pastorais das comunidades indígenas nos esmeramos por muitos anos pesquisando o sentido e transcendência da dita globalização e suas implicações na comunidades. Não é a modernidade em sí mesma o que mais nos preocupa, pois os povos indígenas não tememos a modernidade.

Na história passada nosso avós souberam construir modernidade e globalizações de grande envergadura. A Mesoamérica, por exemplo, como categoria antropológica é o resultado de uma transformação globalizante e modernizadora nuca antes conhecida: do nomadismo os povos que viviam desde o Sul do que agora es EEUU até o norte do Panamá passaram a civilização urbanística a partir da agricultura do milho, durante mais de mil anos: 500 anos antes de Cristo e 800 depois de Cristo. Os astecas, com sua tecnologia das chinampas, o comercio distante e sua concepção  da guerra, implementaram o Anáhuac mexicano uma modernidade grandiosa. O mesmo fizeram  os Incas nos Andes, e os Guaranis no Cone Sul, e não se esqueça dos Maias na Península de Yucatan e na Guatemala com sua sabedoria do tempo, do espaço e das matemáticas. A modernidade e o progresso não são inimigos dos povos indígenas. Se o é a injustiça com que esta modernidade se constrói. E ante a injustiça nossos povos sabem reacionar profundamente não só agora, mas em toda sua história.

Ante os tratados de livre comércio e os macroprojetos modernizadores os povos indígenas perceberam de imediato não a bondade de um planteamento globalizador que nos vem a resolver os problemas de miséria e humilhação, senão a voracidade sem piedade de um modelo  social que, depois de havermos despojado de nosso capital básico, construído  pela terra e seus recursos naturais, agora retrocede pelo pouco que nos fica. Se trata de um sistema que enfatiza a mercantilização de tudo, e a privação do valor humano, pois põe o mercado por cima do ser humano. Isto o dizemos desde os finais dos anos 80 e mais intensamente no princípio dos anos 90. Mas ninguém do poder fez caso de nós. A globalização se impôs, apesar das vozes indígenas e não indígenas que iam contra. Não havia alternativas, argumentaram seus defensores.

 

Nunca mais um mundo sem nós

O lema zapatista no sudeste mexicano tem sido: "nuca mais um México sem nós". Os indígenas de além destas fronteiras tem afirmado o mesmo, mas em seus próprios contextos: "Nunca mais um mundo sem nós". É um lema aglutinador da resistência dos pobre e excluídos do neoliberalismo mundial. Todas e todos nós temos consciência de que somos uma mesma e grande família, que não  pode ver impávida que invadem seu lugar, profanam sua casa, nos privam dela e construem um "mall" o mercado enorme donde não existe lugar para nós. Para os que não são indígenas, estreitar hoje a mão do indígena, mediante um diálogo de culturas, é retornar as fontes primeiras da humanidade para construir juntos o futuro desejado por todos sobre bases sólidas, que dê uma consistência e resistência aos embates do tempo provocados pelos povos originários.

 

Conclusão

Estamos hoje em um tempo especial que da possibilidade para eu as utopias indígenas fecundem a humanidade e faça acontecer um novo amanhecer da vida. O Espírito de Deus e o espírito humano seguem evocando sobre o caos da modernidade atual em espera de homens e mulheres que, junto com Ele/Ela, sejamos cocriadores  e coformadores de um novo cosmos, de uma Terra sem males ou da Casa grande para todas e todos. Os indígenas percebemos claramente  estes sinais dos tempos e, ainda com o risco de ser rechaçados, pomos a disposição dos demais irmãos e irmãs do planeta, em um diálogo amplo inter-cultural e inter-religioso, as sementes de humanidade que viemos guardando nas torres de nossas culturas ancestrais.

 

Tradução: Artieres Estevão Romeiro