|
A campanha do Jubileu pelo cancelamento da dívida
pediu algo mais, além do cancelamento da dívida. Houve outras
exigências específicas. Em primeiro lugar, que o cancelamento
fosse realizado mediante um procedimento imparcial, transparente e participativo.
Em segundo lugar, que se tomassem medidas para assegurar que no futuro
não ocorram crises semelhantes, por outras dívidas.
Dado que a dívida surgiu de uma situação de desequilíbrio
e desigualdade, o simples cancelamento da dívida não seria
suficiente. As outras duas exigências não devem ser vistas
como adendos da exigência do cancelamento da dívida. A longo
prazo, podem ser até mais importantes do que o próprio cancelamento
da dívida.
Transparente significa que os processos de decisão
não deveriam ser ocultos. Isso quer dizer que todos aqueles cujas
vidas são afetadas pela decisão deveriam poder conhecer
o processo decisório. Inclusive, deveriam saber quem são
as pessoas responsáveis, que temas foram considerados, que decisões
foram realmente tomadas, e por quais razões. Como em outros temas,
a transparência é exigida não apenas no processo de
cancelamento da dívida, mas em todas as áreas de finanças
e governo internacional. Pretender promover a democracia e o bom governo,
sem assumir suas interações com governos, de forma aberta
e transparente, é uma contradição para as instituições
internacionais. Tais assuntos, como as estratégias de assistência
aos países, por parte do Banco Mundial, deveriam ser públicos,
assim como deveriam sê-lo todas as exigências políticas
formuladas aos governos pelos credores e instituições internacionais.
Imparcial significa que a tomada de decisão não
deveria estar em mãos de um setor particular. Dado que na crise
da dívida os credores normalmente estão na posição
mais forte, a imparcialidade quase sempre implicará em garantir
que os credores não controlem o processo.
Participativo significa que a neutralidade do processo deve
se realizar, não com uma tomada de decisão de forma distanciada
e não comprometida, mas sim envolvendo todos aqueles que serão
afetados pelas decisões resultantes do processo decisório.
Naturalmente o requisito mais importante, aqui, é assegurar a participação
efetiva dos mais vulneráveis nesse processo.
Tomar medidas, para que crises semelhantes da dívida não
voltem a acontecer no futuro, requer uma avaliação exaustiva
dos antecedentes e causas fundamentais da dívida. A avaliação
deve ser transparente em si, imparcial e participativa, no sentido que
acaba de ser descrito. Tal avaliação teria de considerar
o fato de que os países credores, em sua maioria, são antigos
poderes coloniais; e os países endividados são antigas colônias,
exportadores de matérias primas e manufaturas. Uma avaliação
das causas fundamentais da crise da dívida teria de considerar,
também, a situação desvantajosa das matérias
primas e manufaturas no mercado internacional, e compensar o desequilíbrio.
Deve-se encarar também os problemas de deslocamento da responsabilidade,
sobretudo quando a dívida deriva de processos tais como projetos
de desenvolvimentos falidos, levados a cabo por iniciativa e direção
dos credores. Entretanto, a falha é considerada como total responsabilidade
do país recebedor.
A campanha do Jubileu, na exigência de medidas que devem ser tomadas
para garantir que não ocorram crises de dívida semelhantes
no futuro, cita alguns princípios éticos básicos
que apontam para o tipo de sistema necessário. Descreverei alguns
desses princípios.
a) O direito a uma alimentação adequada, vestuário,
moradia, acesso a assistência médica e educação,
são direitos essenciais. E têm prioridade sobre outros direitos,
como o direito dos credores ao pagamento da dívida.
b) A primeira responsabilidade do governo é o bem-estar do povo,
sobretudo no que diz respeito aos direitos essenciais mencionados. Não
obstante, cada governo tem a responsabilidade de atender esses direitos
básicos, antes de pagar seus credores. Uma certa parte do orçamento
de cada país deveria ser considerada sacrossanta e fora do alcance
dos credores. Essa parte deveria ser determinada de acordo com os direitos
já definidos em documentos da ONU. E deveria incluir uma reserva
prudente, para casos de catástrofes etc.
c) Os governos também têm a responsabilidade de manter um
certo grau de autonomia para o país, que permita, ao povo, um viver
sem cair no servilismo. Assim como é necessário evitar toda
forma de tirania dentro dos países, os governos têm a responsabilidade
de evitar a política servil, ou a dependência econômica
no que se refere a outros países ou instituições.
Essa responsabilidade de manter um certo nível de independência
e autonomia também anula a responsabilidade de um governo para
com seus credores. Isso significa que uma certa parte do orçamento
de cada país deveria ser reservado como fundos para promover o
desenvolvimento, de forma a se manter um nível suficiente de autoconfiança.
Esse desenvolvimento é necessário para garantir que o bem-estar
do povo se realize através de uma participação ativa,
e não de uma aceitação passiva de distribuição.
Essa parte do orçamento também deveria estar fora do alcance
dos credores, já que faz parte de uma responsabilidade dos governos,
que vem antes de sua responsabilidade para com os credores.
Tudo o que está acima descrito fundamenta-se na compreensão
de que:
a) A razão de ser dos governos é o bem-estar de seu povo
b) O direito de propriedade não é fundamental, pois há
certos direitos humanos que o superam. A primeira responsabilidade dos
governos é proteger esses direitos mais fundamentais. Somente quando
possuem recursos suficientes para satisfazer esses requisitos, é
que os governos têm direito de atender às exigências
dos credores. Esse princípio básico é reconhecido,
por exemplo, no capítulo 11 da Lei de Insolvência dos Estados
Unidos, pela qual estados, cidades, condados etc., podem solicitar subsídios
por declaração de falência, sem expor os cidadãos
à perda de seu bem-estar ou de suas propriedades. A proposta é
que o princípio possa ser aplicado em todas as etapas do processo
de pagamento da dívida, e não somente no momento da falência.
Naturalmente, um empréstimo feito a um governo não é
o mesmo que um empréstimo feito a um agente econômico ordinário,
como por exemplo um negócio corporativo. O governo, devido ao fato
de que suas obrigações incluem direitos humanos fundamentais,
terá sempre obrigações mais fortes que sua responsabilidade
para com os credores. Portanto, é necessário um regime internacional
de empréstimos que seja compatível com essas obrigações
fundamentais dos governos.
A lógica do empréstimo é que o recebedor invista
o dinheiro em algum projeto e consiga rendimentos suficientes, com os
quais poderá devolver o empréstimo e os juros, e ao mesmo
tempo reter um certo ganho. Quando não se consegue esse ganho,
ocorrem as crises de dívida. Se um empréstimo não
vai gerar ganhos, é muito provável que gere uma crise de
dívida. Os governos não podem atuar como qualquer outro
agente econômico, não somente porque têm outras obrigações
maiores, mas também porque necessitam de financiamento para projetos
e programas que, provavelmente, não gerarão ganhos. Os negócios
ordinários não têm a responsabilidade primária
de prestar serviços de saúde, educação, socorro
em caso de catástrofes, infra-estrutura etc. Os governos têm
essa responsabilidade primária, e se o financiamento para elas
provém de empréstimos sujeitos à taxa de juros do
mercado ordinário, as crises de dívida se tornam inevitáveis.
Os fundos para governos ou corporações governamentais, ou
empréstimos pelos quais um governo provavelmente será responsável,
deveriam ser classificados de acordo com suas possibilidades de gerar
rendimentos.
- Recursos para usos que não geram rendimentos, especialmente no
caso dos países pobres, deveriam ser fornecidos em forma de doações.
De fato, faz anos que a UNCTAD vem solicitando que ODA seja dado em forma
de doação e não de empréstimo. Ou seja: não
se trata de uma proposta nova. No entanto, ainda se ouvem casos de doadores
que oferecem empréstimos para objetivos tais como o combate à
AIDS, um uso que não vai resultar em nenhum lucro. Tais empréstimos
estão condenados a produzir crises de dívida. Esses financiamentos
deveriam ser em forma de doações que, na maior parte dos
casos, poderiam ser consideradas uma reparação pelo colonialismo
ou pela desigualdade, ou seja: uma exigência de justiça e
não um ato de caridade.
O uso de recursos para objetivos tais como o desenvolvimento de infra-estruturas,
pode indiretamente gerar rendimentos. Dependendo da capacidade econômica
do país, tais recursos poderiam ser doações, ou empréstimos
sem juros, ou a juros baixos, com pagamento a longo prazo, até
que o projeto começasse realmente a produzir rendimentos.
- Empréstimos para projetos dos quais se espera a produção
de rendimentos, poderiam ser concedidos com a taxa de juros do mercado,
mas não deveriam ser garantidos pelo governo. Se um empréstimo
não pode ser feito segundo a lógica do mercado, tampouco
deve se sujeitar a um nível de juros próprio do mercado.
Se alguns empréstimos garantidos pelos governos são indispensáveis,
então deve-se tomar medidas para reduzir a vulnerabilidade governamental,
tais como a limitação do acúmulo de juros compostos
e o reconhecimento das outras responsabilidades primárias dos governos.
Finalmente, a atual crise da dívida deixou claro que é seriamente
necessário ver que a responsabilidade pelas dívidas tem
que ser rateada de acordo com a responsabilidade real. Isso se aplica
às mais que odiosas dívidas que resultam da corrupção.
Partes da atual crise da dívida resultam da quebra de projetos
de desenvolvimento que, embora mal conduzidos, eram bem intencionados.
Nesses casos, não é correto que todo o peso do pagamento
da dívida recaia sobre os ombros do país recebedor. Em muitos
casos, os projetos de desenvolvimento foram realizados por iniciativa
e orientação de doadores e experts internacionais. Mas esses
doadores, credores e conselheiros experts não são considerados,
em absoluto, responsáveis. O poder sem responsabilidade é
um convite à corrupção.
|