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O direito internacional e as instituições
para manter a paz e promover os direitos humanos cresceram, em pouco mais
de meio século, a partir de sonhos embrionários até
tornarem-se realidades incompletas, mas promissoras. Agora, no entanto,
sofrem as conseqüências de uma cacetada desde o rio Potomac.
O poder, o medo e a ignorância, todos manipulados pelo extremismo
militarista que vige em Washington, ameaçam o futuro das conquistas
do século XX.
Nas cinzas da Segunda Guerra Mundial, os EUA vitoriosos
tiveram que decidir. Estavam muito acima tanto dos inimigos vencidos como
dos aliados debilitados. Podiam optar pela via unilateral de uma pax americana.
Mas conheciam de primeira mão os custos da guerra, e tomaram três
decisões sábias.
Primeiro, criar uma organização multilateral, a Organização
das Nações Unidas, em vez de confiar em seu próprio
poder militar para manter a paz. Segundo, em parte para assegurar-se de
sócios fortes na empreitada da paz, ajudou à reconstrução
da Europa e do Japão. E terceiro, dotou a ONU de um comitê
executivo, o Conselho de Segurança, encarregado da paz e segurança
mundial.
Dotou-se o Conselho com a autoridade única de legitimar o uso internacional
da força militar. Sem sua aprovação, nenhum Estado
teria direito de atacar outro país, exceto em casos de autodefesa,
frente a um ataque real ou iminente.
O Conselho não gozava sem limites de tais faculdades. Cada um dos
cinco membros permanentes (China, EUA, França, Grã Bretanha
e a União Soviética agora Rússia) tinha poder
de vetar suas decisões.
Durante a Guerra Fria, deu-se um empate. Com poucas exceções,
a ONU foi incapaz de intervenção militar, devido ao veto
de um lado ou de outro da disputa ideológica mundial. Pior ainda,
a ameaça de Moscou foi utilizada por Washington para justificar
intervenções unilaterais em paises tais como Chile, El Salvador,
Granada, Guatemala, Nicarágua, República Dominicana, entre
outros.
Terminada a Guerra Fria, a ONU quase nasceu de novo. Os vetos quase desapareceram.
Autorizou-se intervenção militar contra a invasão
do Kuwait pelo Iraque (em 1990), para restaurar a possibilidade de democracia
no Haiti e para frear a limpeza étnica na Bósnia. Criaram-se
tribunais penais internacionais para os crimes internacionais na Iugoslávia
e Ruanda.
Apesar de tudo, ainda havia uma tendência à inação.
Por exemplo, os EUA impediram a intervenção oportuna contra
o genocídio em Ruanda e a China não aceitou um tribunal
internacional para o Camboja. Não obstante, a ONU finalmente começou
a mostrar avanços e provocar esperanças.
Em algumas regiões o internacionalismo avançou muito mais.
Sobretudo na Europa, onde os 45 países entre Islândia no
Atlântico e Rússia as margens do Pacífico, aceitaram
a competência vinculante da Corte Européia de Direitos Humanos
em Estrasburgo. E com passos iniciais, na América Latina, todos
os países de língua espanhola e portuguesa (com exceção
de Cuba) aceitam hoje uma competência similar para a Corte Americana
de Direitos Humanos em Costa Rica.
A grande maioria dos países entende que o desenvolvimento das leis
e instituições internacionais coincide com seus interesses
nacionais. Para a paz, necessita-se de segurança multilateral.
Para os direitos humanos é essencial a ação coletiva.
Alguns governos resistem. Mas nadar contra a corrente da globalização
é cada vez mais difícil. Embora seja certo que os governos
de fato reservem a soberania de seguir seus próprios caminhos quando
estão em jogo seus interesses fundamentais sejam nacionais
ou políticos , na maioria dos casos aceitam o multilateralismo.
Senão, como poderíamos explicar a realidade atual, em que
a metade dos países do mundo aceita a competência da Corte
Penal Internacional, submetendo-se assim voluntariamente ao risco de processos
na Corte de Haia contra seus próprios soldados e líderes?
Há aqueles que são capazes de resistir. Não se pode
obrigar o México ou ao Brasil a que aceitem um pacto que não
querem. Em outras latitudes, China, Índia, Nigéria e Rússia
são capazes de cantar sua própria canção.
Mas há, no entanto, um país cujo poderio não tem
paralelo nem por enquanto competição. Os gastos
militares dos EUA já excedem o total de todos os demais países
do mundo. Sua economia é o dobro da economia de seu rival mais
próximo. Sua capacidade diplomática, ainda quando não
invencível, é a mais poderosa do mundo.
Depois da Guerra Fria, os EUA novamente se viram frente ao dilema de 1945:
abraçar ao multilateralismo para a paz, ou impor seu próprio
império militar. Por várias razões, optaram de novo
pelo caminho multilateral. Não haviam se recuperado de sua humilhação
no Vietnã. Também não estavam acostumados a encontrarem-se
sozinhos por cima do mundo. Em 1990 o presidente dos EUA foi um republicano
internacionalista (Bush pai), seguido por um democrata de 1993 a 2001.
Foi só naquele tempo em que os EUA caíram na tentação
do unilateralismo militar. Bush pai invadiu o Panamá. Clinton levou
à OTAN a bombardear a Iugoslávia durante a crise de Kosovo.
Nem um nem outro foi autorizado pelo Conselho de Segurança. Nenhum
dos dois cumpriu com o direito internacional.
No entanto, aqueles casos foram caracterizados como exceções.
Insistiu-se em que o do Panamá foi um caso de autodefesa... e que
Kosovo foi supostamente uma exceção (que não figura
na Carta da ONU) para uma intervenção por motivos humanitários.
Explicações pouco convincentes, mas que buscavam pôr
a salvo a regra geral: só é permitida a guerra por autorização
do Conselho de Segurança, ou em caso de autodefesa. A política
oficial dos EUA ficava assim comprometida com a ONU e com o direito internacional.
O atentado de 11 de setembro de 2001 muda tudo. O poderio estadunidense
agora se combina com o medo. E está nas mãos de um novo
presidente, que não respeita a ONU. A maioria de seus assessores
manifesta desprezo não só com a ONU, mas com qualquer outro
país de menor poder isto é, todos os países
do mundo.
A princípio de 2001 eles entram no Pentágono já com
seu programa de unilateralismo e militarismo. Mas não conseguem
vendê-lo imediatamente ao chefe, por ser politicamente inaceitável
entre o público do país. Até que o 11 de setembro
dá ao presidente um cheque em branco para defender o país
frente ao terrorismo internacional.
Para a intervenção no Afeganistão, no entanto, houve
argumentos discutíveis de autodefesa.
O caso que revela uma ruptura aberta é o do Iraque. Em setembro
de 2002, Bush diz à ONU: ou fazem o que eu quero, ou serão
irrelevantes. Em março de 2003, quando não há maioria
no Conselho de Segurança para invadir o Iraque felicitações
ao México e ao Chile por resistir a fortes pressões da superpotência
e não entregar seus votos Bush invade.
Quando os advogados de Bush propõem justificativas jurídicas,
ninguém acredita neles. Mais importante é a realidade, reforçada
por declarações públicas dos assessores do Pentágono:
em temas de segurança os EUA farão o que quiserem. Não
importa nem a ONU nem o direito internacional. Permitirão à
ONU sobreviver, mas com a missão de marinheiro, não de capitão.
Ficam em perigo, pois, as conquistas e os sonhos do século XX.
E é preciso resgatá-los. Dado o hiperpoder de um só
país é necessário um esforço amplo e forte,
dentro e fora do país que ameaça a ordem pública
mundial. A solidariedade e a luta estão aí para isso. Não
há tempo para descansar. Nem muito menos para perder a esperança.
A história nos ensina que não há impérios
permanentes, só suas ilusões o são.
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