ACCÉSIT del Concurso de Páginas Neobíblicas
convocado por la Agenda Latinoamericana-Mundial'2003
en su VIIIª edición.
Vea la nueva convocatoria que hace la Agenda'2004 (XIª edición).

 

Multiplicação dos pães

 

 

-- E então, Paulo, o que você achou?
-- Não sei... Você conhece essas conversas. Tudo muito bonito no começo, e depois... Eu ando meio descrente, Pedro.
-- Mas aquele rapaz, o Beto, fala de um jeito que dá confiança.
-- Esperança.
-- É, deve ser.
-- Você não tem jeito, Pedro. Já levou tantas e continua aí, pondo fé em todo mundo.
-- E a gente vai fazer o quê? Tem que dar uma chance pra quem diz que quer ajudar... Cuidado com a vala.
Distraído, Paulo quase ia pisando no esgoto que corria a céu aberto, na rua principal do Jardim Orly, como acontecia em tantas favelas da zona sul de São Paulo.
-- Eu acho que você dá muita trela pra esse pessoal, Pedro.
-- Só quando eu acho que tem a ver.
-- Tem a ver com o quê? O discurso do tal Beto não é muito diferente dos outros. Fala mansa eles têm, você sabe muito bem.
Era o começo de um samba do Waldir, feito numa tarde em que, liderado por Pedro, o povo do Orly tinha posto os politiqueiros do Maluf pra correr, anos atrás.
-- Vamos ver o que acontece... O Beto prometeu que na semana que vem chega o material pra construção da sede.
-- Nós não queremos esmola, e sim uma solução pras coisas.
-- Pois a sede é o primeiro passo, Paulo. Um lugar pra gente se encontrar, discutir os problemas do bairro.
-- Sei não...
-- Tem umas moças que vão dar aula de Teatro e Música pra molecada...
-- Isso não enche barriga.
-- E também uns professores pra dar aula pros meninos que não conseguiram vaga na escola. E dois médicos...
-- O de criança, tudo bem. Mas o de mulher... Quem de nós vai ser louco de mandar nossas neguinhas pra um velho safado apalpar, Pedro, me diga. Quem de nós?
-- Você viu como o velho falou. No começo, ele vai visitar as casas, ensinando as mães a prevenir doenças, lavar as mamadeiras direito, ferver as fraldas, fazer soro caseiro... Com isso, vai ganhando a confiança das mulheres.
-- E os maridos?
-- Calma, Paulo. Há tempo para tudo. Vamos apostar no Beto e na gente dele, vamos fazer um mutirão pra construir a sede...
-- E quem vai querer trabalhar no sábado e domingo, depois de penar a semana inteira num emprego filho da puta? Não vai ser fácil.
-- Difícil é convencer você. Vê se me ajuda, Paulo.
-- Tá bom, eu vou juntar o pessoal. Se der errado, vai ser só mais um tiro n’água, como tantos.
-- Mas pode dar certo.
Parando na frente do Bar do Tino, os amigos se olharam.
-- Sabe o que me faz ter esperança, no Beto? O jeito dele falar, como se desse um impulso, uma partida no motor. Um motor que é nosso, Paulo, muito nosso.
-- Já disse que vou juntar o pessoal.
-- Mas vê se não passa essa descrença pra eles. Senão, ninguém aparece.
-- Tá. Vamos tomar uma?
-- Não posso mais, Paulo, você sabe.
Pedro se despediu do amigo e foi para o barraco onde morava. Na memória, umas palavras do Beto:
-- Não dá pra trabalhar o Social sem a Arte... Tem o alimento que mata a fome, e o outro, que enche a alma.
Pedro não sabia bem porque, mas concordava.
Deitou na rede e sonhou com o Jardim Orly que ele queria.
Dormiu, e dormiu fundo. Acordou com batidas na porta e um zum-zum de gente que chegava.
-- Viemos conversar aqui, Pedro.
Abriu os olhos e viu Paulo, Zeca, Waldir e a servente da escola.
-- Vão se acomodando.
-- E então, Pedro, qual é o assunto mesmo?
Pedro começou a falar, e mais gente chegou. O barraco parecia pequeno, mas era como coração de mãe: cabia sempre mais um, mais uns.
-- Vocês sabem que não suporto politicagem, nem conversa mole. Mas a idéia da sede parece uma coisa boa.
-- Falando em coisa boa, não tem nada pra beber?
-- Vamos conversar primeiro, minha gente.
-- Eles vão dar cesta básica?
-- A gente não tem que ganhar, e sim que fazer.
-- Fazer o que, e de que jeito?
-- É pra isso que estamos aqui. Pra decidir. Se a gente construir a sede...
-- Com que grana?
-- Com trabalho. O material, o Beto consegue.
-- E pra que ele vai fazer isso?
-- A Ong dele trabalha assim. Eles entram com o material, nós com a mão-de-obra. Dão os professores de Teatro, de Música, de escola... E a gente dá os meninos.
-- Menino é o que mais tem, por aqui. E desempregados.
-- Tem curso para desempregados, também. E médico.
-- Médico de mulher...
-- Ah, Pedro, eu que não mando minha Rosa, nem as meninas, pra doutor nenhum bolinar.
-- O velho vai começar ensinando a cuidar dos nenéns.
-- Isso não precisa. Toda mulher nasce sabendo.
-- Mas tem neném que morre, por falta de cuidado.
-- E de fome? Tem algum médico contra a fome, lá na turma do Beto?
-- Porra, não avacalha.
-- Bom, pessoal, se o material chegar, vocês topam construir a sede?
Não havia quem não topasse.
-- E de quem vai ser essa sede?
-- De todo mundo, oras.
Mais gente chegava. O movimento no barraco de Pedro chamava atenção. Meninos punham as caras nas janelas. Mulheres vinham procurar os maridos, saber o que estava acontecendo.
Até Padre Leonardo, que tinha ido soltar os garotos da Capoeira, presos na véspera, apareceu para dar uma espiada.
-- Chegue mais, padre. Como foi, lá no Distrito?
-- Prometi ao delegado que os moleques vão se comportar. Mas o homem disse que, na próxima, eles baixam Febem.
O padre ganhou lugar de honra na reunião, que a essa altura se estendia até o quintal. Era outro que tinha idéias malucas; vivia falando de uma igreja mais perto do povo.
Pedro chegou a achar que aquela presença era um sinal divino. Teve certeza, quando Padre Leonardo apoiou a idéia e levou a coisa adiante:
-- Pessoal, a gente precisa decidir o que vai acontecer nessa sede, quando ficar pronta.
-- Eu sempre quis um lugar pra ensinar a mulherada a fazer ponto cruz -- arriscou Esmeraldina, meio tímida.
-- Um curso para bordadeiras. E o que mais?
-- O Zeca é azulejista de primeira. Está desempregado, mas podia ensinar quem quisesse...
-- Outro curso. Quem mais?
-- Eu -- disse Helena, professora em Santo Amaro. -- Como esse ano só peguei aula de manhã, posso ensinar à tarde...
Uma faisquinha de entusiasmo se acendia. Quem chegava, se inteirava da coisa pelos outros. Meninos se encarregavam de passar a notícia:
-- Vamos ter uma associação de bairro, que nem lá em Santo Amaro.
-- E qual político está bancando?
-- Ninguém, oras. Mas um tal de Neto vai ajudar.
-- Não é Neto, moleque. É Beto.
-- E o Padre Leonardo gostou da idéia.
-- Diz que a gente pode...
A centelha era um fogo na palha.
A sede, que nem existia, foi ficando com os horários lotados de aulas, festas, reuniões.
Alguma coisa começava a nascer. A tarde caía.
Pedro foi até a cozinha, abriu o armário e fez o inventário: duas latas de sardinha, cinco pães amanhecidos. Abriu as latas, pôs os peixinhos num prato, pegou os pães, voltou à sala. Deu com os olhos grandes dos meninos. Virou pra Rita Baiana, que estava por ali:
-- Comadre, dá isso pros meninos.
Despachada, ela rebateu:
-- Não vai dar pro começo, compadre. Vou em casa pegar uns tomates.
Waldir pescou a coisa no ar e avisou que ia buscar uns chuchus.
E cebola? Ninguém tinha uma cebola sobrando? A servente da escola, sim. E umas batatas...
-- Pra engrossar o molho.
Alguém se lembrou de um pedaço de abóbora, reservado para o almoço de domingo. E um vidro de pimenta, que não podia faltar. E a farinha, onde já se viu comer sem farinha?
O barraco pulsava de gente que entrava e saía. Um chegante perguntou:
-- É aqui a festa?
-- É. Você só trouxe a boca? Não tem nada sobrando, na cozinha?
-- Sobrando, nunca. Mas vou ver...
-- Gente, precisa de mais panela.
-- Panela vazia é o que mais tem, lá em casa.
A noite caía, quando tudo ficou pronto.
As duas latas de sardinha e os cinco pães tinham rendido um banquete. Alguém fez graça, quando Padre Leonardo abençoou a comida e agradeceu a Deus. Uma mulher mandou o engraçadinho calar a boca. Com a corda toda, o padre chamou os meninos do catecismo para rezar o São Francisco das Chagas, Pai da pobreza, não deixe faltar o que pôr na mesa.
Pedro começou a servir os pratos, tigelas, o que houvesse. Passava para as mulheres, que passavam para os outros, até que todos receberam sua porção.
Waldir, que na volta de casa tinha trazido o violão e a cachaça, puxou um samba de breque. Uma morena faceira, de vestido branquinho como os lírios do campo, soltou as ancas e as asas dos pés.
De alma leve, Padre Leonardo comentou com Zeca:
-- Nem Salomão, em toda sua glória, se vestiu como essa menina.
-- Quem é Salomão, padre? Eu conheço?
-- Não, filho, nem eu.
A roda de samba esquentava. A lua crescente coroava a festa que, com um pouco de fé, lembraria a multiplicação dos pães e dos peixes. Assim pensava Padre Leonardo, que arriscava um Glória a Deus nas alturas e paz na Terra aos homens de boa vontade, entre um gole e outro. Rezava para si, para ninguém, para todos.
Também Pedro rezava a seu modo, pensando que no dia seguinte, quando as barrigas roncassem, aquela gente continuaria alimentada. De outro alimento. Outro alento. A sede já estava pronta, dentro de cada um. O mais, seria trabalho. Trabalho, e não emprego. E baldes de Boa Vontade.

 

Yara maria Camillo
São Paulo, Brasil

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