Agenda Latinoamericana’2002, página 210-211
Vítimas
e vitimários.
Perdoar
e deixar-se perdoar
O caso Pinochet e o dos militares e esquadrões da morte implicados em torturas e assassinatos tornaram inocultável um grave problema em muitos países da América Latina: a reconciliação é necessária, porém sumamente difícil. Várias são as razões para isso, mas queremos concentrar-nos agora numa que é fundamental: os vitimários – em geral - não querem reconhecer sua responsabilidade. Pior ainda, desprezam o perdão que as vítimas lhes oferecem. Sobre isto queremos refletir e oferecer um caminho – utópico - para a reconciliação.
1.
Verdade, justiça e perdão. Depois da repressão, massacres e
guerras tem que haver algum tipo de catarse social e deve-se buscar
“razões mitigantes” para julgar os fatos, pois, de outra
forma, o futuro se torna simplesmente inviável. Há situações
limites na Humanidade, e por isso a sabedoria acumulada tem rechaçado o
fiat iustitia, pereat mundus (faça-se justiça, mesmo que o mundo pereça). Mas
essa mesma sabedoria exigiu que a compreensão na hora de julgar
não leve à aberração. Daí, a
declaração de delitos de lesa humanidade, que não prescrevem nem
podem receber anistia. Se tudo, absolutamente tudo, merece perdão, se
não há que prestar contas nem das maiores atrocidades, o futuro
da Humanidade tampouco é viável. Uma verdadeira reconciliação
social deve levar, pois, em conta ambas as coisas: a possibilidade do
perdão social, e que este não se outorgue de qualquer maneira.
Daí surge a necessidade de impor condições ao
perdão. Em El Salvador se pensou que o caminho que melhor leva ao
perdão do vitimário e a readmití-lo na sociedade é
o da verdade, justiça e perdão.
Contra o
encobrimento e o esquecimento dos crimes torna-se necessária a
“verdade”, e por múltiplas razões. Objetivamente, necessita-se da verdade para saber
se ainda perduram as estruturas e comportamentos que deram origen à
barbárie. Necessita-se para nomear devidamente vítimas e verdugos
e superar a cruel tergiversação de chamar as vítimas de
verdugos – responsabilizar, por exemplo, a Monsenhor Romero, pelas mortes
da guerra - e os verdugos de vítimas. A verdade é
necessária para se chegar a conhecer o paradeiro dos desaparecidos.
Definitivamente, necessita-se que a verdade - não a mentira - seja o
fundamento sobre o qual se construirá o edifício social. E a realidade
se encarrega de verificar quão válida é esta
exigência: muitos dos problemas no Chile, El Salvador, Guatemala na
atualidade, devem-se ao fato de não querer aceitar a verdade do
passado.
Subjetivamente, torna-se necessária a
honradez com a verdade para que o ser humano não fique submetido
à desumanização integral. Para os cristãos - e todo
o mundo as possam compreender - são verdadeiras as palavras de Paulo aos
Romanos: “A cólera de Deus se revelou contra os que oprimem a
verdade com a injustiça”. As conseqüências de oprimir a
verdade são que as coisas já não revelam aquilo que
são nem ao seu criador, o coração do homem se obscurece e
o ser humano cai na desumanização total.
Perante a impunidade necessita-se também de “justicia” com algum componente oneroso. Isso é o que se pede hoje na América Latina para aqueles que foram verdugos. Não se trata de vingança nem, muito menos, de exaltar a crueldade nem de instigar baixas paixões. Trata-se de impor gestos ao menos, com os quais – pelo que tem de oneroso - o vitimário possa expressar arrependimento pelo que cometeu e mostrar a disposição de reconhecer e refazer o mal, o propósito de emenda e a satisfação, que se dizia antes. No fundo, trata-se de que o ofensor chegue a ser justo consigo mesmo, saia de si mesmo para ser “para os demais”, e que isso, que sempre é custoso, fique expresso, de alguma maneira, publicamente. Cumpridos estes passos bem se pode conceder o perdão com o desejo de que o ofensor chegue a “estar com os demais” e “o que é custoso se transforme em bênção”.
2. A
dificuldade de “se deixar perdoar”. O processo descrito é
necessário, mas os vitimários raramente se submetem a ele, e nem
sequer costumam aceitar o perdão oferecido pelas vítimas. Este
oferecimento de perdão, mesmo que difícil, acaba acontecendo.
Num lugar de El Salvador, no dia de Finados, perto do altar havia vários cartazes com os nomes de familiares mortos e assassinados com flores ao seu redor. Havia também outros cartazes em que se viam apenas algumas linhas sem nomes nem flores, e com esta frase: “Nossos inimigos mortos. Que Deus os perdoe e os converta”. Um velhinho nos explicava que dessa maneira queriam recordar os seus defuntos e homenageá-los com flores. E acrescentou: “Mas como somos cristãos, sabe?, cremos que também eles, os inimigos, deviam estar no altar, mesmo que não mereçam receber flores. São nossos irmãos apesar de nos matarem e assassinarem. Você sabe que a Bíblia diz que é fácil amar os nossos amigos, mas Deus pede também que amemos aqueles que nos perseguem”.
Que as
vítimas perdoem, mesmo sendo difícil, costuma acontecer. O
problema maior está nos vitimários aceitarem o perdão
oferecido pelas suas vítimas. A dificuldade é evidente, pois
aceitar o perdão significa reconhecer o próprio pecado -
aceitando a verdade e abrindo-se à justiça -, mas também o
ofensor, com o perdão, recebe a paz, não se fecha e se abre para
o futuro. Às vezes, porém, a negativa tem raízes mais
profundas: não se quer abrir mão do “ter
razão”, como se nada de aberrante houvesse nos crimes do passado,
mas, ao contrário, algo bom, patriótico e até
cristão. É a arrogância, a hybris, o querer “ter
razão”. Parece cumprir-se, noutro contexto, o final da
parábola do rico Epulão e o pobre Lázaro: ”nem que
um morto ressuscite irão aceitar o perdão ofecido”. No
fundo se despreza o perdão porque não se quer aceitar que a
salvação venha de outros. O que mais dificulta a
reconciliação é o fato dos vitimários não se
deixarem perdoar.
3. A
colaboração do perdão em ordem a reverter a realidade
incorrigível.
Que sentido tem, então, animar ao perdão e propor um caminho para
a reconciliação, se os frutos são tão escassos? A
resposta é utópica e cheia de esperança: perdoar é,
sobretudoo, um esforço por humanizar a realidade.
Se se me
permite uma reflexão pessoal para esclarecer a lógica do que
acabo de dizer, em meio à barbárie salvadorenha – bem
próxima a mim - nunca se me ocorreu que estavam fazendo algo contra mim pessoalmente, e
daí que não me vinha à mente o assunto do perdão,
nem me ocorria pensar se ele era fácil ou difícil para mim.
Quando me comunicaram por telefone o assassinato de meus irmãos
jesuítas, o coração ficou gelado e a cabeça vazia,
mas o que mais me indignou foi escutar que também haviam assassinado a
cozinheira e sua filha de quinze anos. Antes de pensar no perdão - sim
ou não -, tomou conta de mim o sentimento de indignação e
impotência perante o mistério da iniquidade. E senti a mesma coisa ao
inteirar-me da barbárie de El Mozote, os Grandes Lagos, Timor Leste,
Iraque...
Essa
indignação primigênia se configura de diversas maneiras,
supostamente. Para uma camponesa, a quem torturam e assassinam a seu esposo e
fica sozinha com seus filhos órfãos, a indignação e
a impotência, e o assunto de perdoar ou não, deve ser bem
diferente do que acabo de dizer. No meu caso, causa indignação e
deixa sem palavra a prepotência dos verdugos; a fúria com que
massacram os pequenos ou quando os deixam indefesos, matando os seus
defensores, como fizeram com Monsenhor Romero; a mentira, o mascaramento, a
falta de vergonha ao usar o nome de Deus - ou da democracia - em vão; el
descaramento de presidentes norte-americanos, jurando perante o congresso a
melhoria dos direitos humanos em El Salvador; o desafio do mal a tudo e a
todos, a zombaria que fazem do bem e dos bons. Também causa espanta a
indiferença das igrejas e, às vezes, o macabro espetáculo
de cristãos, sacerdotes e até bispos que se põem do lado
do opressor. E, como já afirmei, causa impacto a vileza de não se
deixar perdoar.
Antes,
pois, que a existência do “ofensor”, deve-se enfraquecer o
poder do “mal”, que silencia, humilha, oprime e aniquila o pobre e
o fraco, como se estes não tivessem o direito de “ser”.
Surge então a pergunta paulina: “quem nos libertará deste
mundo de pecado?” E surge a pergunta da teodicéia, não por
que esta ou aquela pessoa cometeu esta ou aquela ofensa, mas por que a
realidade é assim e por que é assim - inativo, impotente - Deus,
seu criador. Segundo isto, antes que se perguntasse pela possibilidade do
perdão, como uma reação humana adequada, surge outra
pergunta mais primigênia: se é possível reverter a
história, humanizar a realidade, que a bondade consiga envolver o
ofensor e a vítima. Anos atrás escrevi que a grande dúvida
é saber se “o pecado tem poder”. Quisera agora dizer que a
grande utopia é que “a bondade tenha um poder maior que o
mal”.
Dentro
desta esperança abrangente, o perdão tem um primeiro significado
positivo, “metafísico”, poderíamos dizer. Conceder
perdão é a “contribuição” modesta,
utópica e esperançada para reverter a história, para poder
diminuir seu poder maléfico e ajudar para que cresça seu poder
benéfico. O perdão expressa a utopia primeira: que o bem pode
triunfar sobre o mal.
4. A
contribuição do perdão para se conseguir a humanização
dos seres humanos.
O que acabamos de dizer não tira a importância da dimensão
interpessoal do perdão.
Oferecer
perdão ao outro é um ato sumamente pessoal. Não se trata
de absolver os
pecados, distanciadamente, num contexto canonista (o ad instar iudicii que diz o Concílio de
Trento), mas, como fez Jesus, trata-se de acolher o outro que nos ofendeu, não
fechar-lhe ao futuro, oferecer-lhe comunhão, esperar que esta seja
aceita e alegrar-se com isso. “Quando forem disparar contra mim
não me tapem os olhos. Quero que vejam que lhes perdoo”, disse
João Alsina, fuzilado no Chile em 1972.
Esse
perdão é graça e quem se deixa perdoar faz uma
experiência de gratuidade. Perdoar nunca pode ser um ato de
dominação, mesmo que fosse sutil. Perdoar não significa
vencer, como disse J. I. González Faus. “Pelo contrário
significa renunciar a uma razão que se pode ter, a um direito punitivo
que pode ser bem real... para reconstruir a relação com o outro.
O perdão tenta introduzir... uma lógica imprevista de gratuidade
que supera a lógica da rivalidade... O perdão aspira nada menos
que mudar o outro e purificar o próprio coração”. Um
perdão “dominador” sempre seguirá sendo
expressão da hybris. Sua superação mais radical são
as palavras de Jesus à mulher pecadora no momento em que a “perdoava”:
“Tua
fé te salvou” (Lc 7, 50).
O
perdão, como graça, tem seu próprio poder. Instala o
perdoado em sua verdade. “Só o que foi perdoado se sabe
pecador”, dizia K. Rahner. A graça é capaz do grande
milagre de fazer triunfar a verdade sobre si mesmo. O que foi perdoado fica
liberado de si mesmo, e pode, então, explodir em generosidade, como
aparece na meditação sobre os pecados nos Exercícios
espirituais. Ao
perdoado agradecido santo Inácio pede-lhe que se pergunte “o que
vai fazer” e lhe sugere, simplesmente, “discorrer sobre o que lhe
foi oferecido”. Sua práxis pode ficar libertada da hybris para
não buscar-se a si mesmo, e para “fazer a revolução
como um perdoado”.
Por
último, o perdoado pode, por sua vez, perdoar também.
“Amados para amar”, diz João. “Libertados para
libertar”, diz Gustavo Gutiérrez. “Perdoados para
perdoar”, diz Jesus. Perdoar humaniza a realidade e o ofensor. E humaniza
a quem concede o perdão.
Quisera que
estas reflexões ajudassem a compreender o que está em jogo numa
situação na qual há a necessidade de reconciliação
depois da barbárie
.