Agenda Latinoamericana-Mundial’2002

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Perfil do negro

Rafael Savoia

Coordenador do Centro Comboni África/Afrodiáspora, Verona, Itália

 

A população negra das Américas passa de 140 milhões de pessoas. Não é homogênea, porém. Um jovem negro dos EUA tem consideráveis diferenças culturais, se comparado com um coetâneo seu de Salvador, Bahia, no Brasil, ou de Assunção no Paraguai, ou ainda do Valle Del Chota, na Cordilheira dos Andes, no Equador. Diversos são os grupos afro-americanos espalhados pelo Continente. É o mundo negro das Américas, que teve de defrontar-se com o dos índios e dos europeus. As mútuas influências originaram novas culturas, ou, como diria Manuel Zapata Olivella, a “mestiçagem cultural triétnica”. Conforme as regiões e os diferentes processos históricos, prevalece uma ou outra, mas, geralmente, existe a presença simultânea das várias raízes.

No caso dos afrodescendentes, Roger Bastide distinguia entre as “culturas afro-americanas”, mais marcadas pelos elementos africanos, e as “negro-americanas”, que sofreram um processo mais intenso de aculturação. É indubitável, em todo o caso, a força dessas “sobrevivências” culturais e desses “sincretismos”, que conseguiram resistir a séculos de domínio “branco”.

As culturas afro-americanas não se expressam somente na dança e na música. Como escrevia o líder negro colombiano Amir Smith-Córdova, “não somos da África, mas é um fato que, “pigmentogeograficamente”, somos um número tão grande de habitantes, que se poderia pensar no conceito de negritude como bandeira étnica para a consecução de nossos objetivos. Daí, a importância de criar, inicialmente, as condições apropriadas, não para que o negro dance, que, como todos sabem, dança, e muito bem; o que queremos não é limitar-nos a dançar”. O homem e a mulher negros deram às Américas muito mais do que narram os livros escolares...

Todos têm em comum a origem africana, o tráfico de escravos, a escravidão nas cidades e no campo, a resistência heróica dos palenques, povoados constituídos por aqueles que se autolibertavam e que, ainda hoje, representam símbolo de dignidade e de luta para o movimento negro e são parte integrante do mais autêntico patrimônio espiritual da humanidade.

O cimarronaje não foi uma reação à imposição da escravatura, mas a expressão vigorosa de resistência cultural, radicado como está na comum origem africana e na experiência de uma opressão total. Fundamentou-se na tomada de consciência da identidade étnica.

A história narrada pelos opressores nos revela grandes figuras que animam, ainda hoje, quantos lutam pela liberdade, em qualquer parte do mundo: Nat Turner, nos EUA; Satuyé de los Garífonas, de San Vicente e América Central; Bayano, do Panamá; Ruy Miguel e Reina Guiomar, na Venezuela; Domingo Bioho, na Colômbia; Alonso de Illescas, no Equador; Francisco Congo, no Peru; Zumbi, no Brasil; Lemba, em Santo Domingo; Makandal, no Haiti; Cudjoe, na Jamaica. São fontes privilegiadas de inspiração para os jovens, os políticos negros de hoje e para as organizações. Entre estas, lembramos o Movimiento Nacional Cimarrón de Colombia e a filosofia do quilombismo do afrobrasileiro, Abdias do Nascimento.

Entre os principais fundamentos da cultura afro-americana assinalamos, ao menos, os seguintes:

Os africanos arrancados de seu Continente e seus descendentes, apesar de todos os esforços escravagistas para destruir suas crenças, religiões, tradições... Quando pensavam que os haviam reduzido a “bens semoventes” sem direito civil algum, extraíram do mais profundo de seu ser redobradas energias. Criaram novas formas de religiosidade e religiões, cheias de vitalidade.

Na segregação típica do sistema escravagista, também eram inevitáveis certas relações, como as de dono/escravo, mãe-nutriz negra/patroa e crianças brancas, e outras, que tanto davam lugar a intercâmbio de crenças e tradições, quanto proporcionavam motivo para rebeliões, fugas e surgimento de novos palenques. Os escravos provinham de países e culturas diferentes, algumas conhecedoras da escrita; mas, no cativeiro, souberam inventar e criar, pelas circunstâncias e por própria escolha, privilegiando a tradição oral sobre a escrita. Em concreto, empregaram um meio de comunicação eficaz e comunitária, com um forte poder convocatório: a linguagem do tambor. Esse instrumento ressoa, ainda em nossos dias, de Belise à Patagônia, de Los Angeles a Roma, nos rituais e nas festas, recordando o passado e preparando o futuro.

O tráfico de escravos, que durou séculos, contribuiu para alimentar as culturas afro. Os donos favoreciam os cantos, danças, jogos, procissões, reuniões... entre membros das mesmas “nações”. Permitiam-no para provocar a divisão e a rivalidade entre os negros. Mas os vencidos, uma vez mais, souberam transforma tudo aquilo em ocasião de união, de recuperação de sua identidade. Alguns estudiosos encontram lá, naquelas organizações negras a raiz do carnaval, que faz vibrar os países americanos e caribenhos.

A emancipação generalizada nos países latino-americanos, desde a metade do século XIX, criou cidadãos de segunda categoria, especialmente, entre os indígenas e os negros. Nas atas do I° Congresso de Cultura Negra das Américas (1973), lê-se: “O trabalho do escravo negro teve importância decisiva para o enriquecimento do branco europeu e dos crioulos, durante a Colônia. Esse processo foi comum nos EUA e na América Latina. Atualmente, abolida a escravidão, o negro continua participando, de maneira desigual, do sistema econômico. Mas aprimorou sua consciência de ser um grupo étnico com cultura própria, e de ter sido fator determinante para o crescimento econômico dos respectivos países e do Ocidente.

Especialmente, em torno dos anos 70, iniciou-se um processo de organização em níveis: local (“La Saya”, na Bolívia; o grupo “Cambacuá” do Paraguai), nacional (“Movimiento Nacional Cimarrón” da Colômbia; e “Movimiento Afro-ecuatoriano Conciencia” e a “Federación de Organizaciones Negras de Pichimcha”, no Equador; o “Movimento Negro Unificado” do Brasil; a “Organización para el desarrollo de las Comunidades negras de Honduras”, ODECO), e continental do movimento afro, como a “Red continental de organizaciones negras”. Reivindicam igualdade de oportunidades, na escola, no trabalho, na saúde, no tempo livre. Todavia, em 2000, as organizações negras de Lima lutaram para ter acesso a certos clubes e, em Miami, a certos bares.

Constituíram, por exemplo, no Equador, alianças com movimentos sociais, indígenas e populares. Já abriram seu caminho.

Nos últimos decênios, as religiões tradicionais afro-americanas, em particular, o Candomblé, a Umbanda, Macumba do Brasil e Santeria cubana demonstraram uma vitalidade própria e se abrem sempre mais à América do Norte e também à Europa, seguindo os caminhos do comércio e da migração. Hoje, pode-se encontrar “mães e pais de santo” tanto nos “terreiros” de São Luís, Maranhão. Brasil como nos de Milão.

Os afro-americanos são um sujeito emergente, ao lado da mulher, na política e na economia dos países latino-americanos. Nos EUA, o movimento negro dos quentes anos da segunda metade da década de 60 conseguiu conquistas sociais e políticas não-diferenciadas, com senadores, deputados e prefeitos de grandes cidades. O mal-estar, não obstante, faz-se sentir: basta recordar a sublevação de Los Angeles (1992) ou a marcha do “milhão de homens negros” (1995), promovida por Louis Farrakhan, que mantém seus olhos atentos aos negros da América Latina, como mostrou sua viagem a Cuba.

Tomando, livremente, dos índios, dos mestiços, dos europeus, os negros deram vida a novas culturas que influenciaram a própria cultura ocidental. Pense-se na contribuição dada a respeito dos direitos humanos pelo movimento de Martin Luther King, e também da música afro. Depois de séculos de opressão, reafirmaram suas religiões e estilos de vida, contribuindo para a formação da realidade latino-americana. Na cultura do país mais poderoso do mundo deixaram marcas indestrutíveis.

As lutas dos afro-americanos – culturais, sociais e políticas – tiveram também como resultado um reconhecimento da própria especificidade das Constituições de alguns países, como Colômbia, Equador, Brasil e – o caso mais avançado é o da Lei 70 da Colômbia sobre a identidade, educação e terras das comunidades afrocolombianas – tal reconhecimento começa a encontrar uma tradução nas legislações correntes.

Finalmente, adverte-se para a necessidade – também no movimento negro – da autocrítica e de uma “ética do amor”, como diz Cornel West: “O amor para consigo mesmo e para com os outros são dois modos de aumentar a auto-estima e de animar a resistência política no âmbito da própria comunidade...”.