Agenda Latinoamericana-Mundial’2001-2002
Concurso de Páginas Neobíblicas
Accésit
Nós
também queremos o Sistema (1Sm 8)
Fernando
Bernabé López
Desde que o
Senhor a escolheu para juiz e profeta, Utopia tinha dinamizado o povo como
ninguém o fizera antes. Seus inimigos temiam sua presença e
sempre foram derrotados, quando tentaram dobrar a vontade popular. Mas, Utopia
estava envelhecendo — ou seria o povo?, não sei —; o certo e
verdadeiro é que os anos não perdoam — nem pedem
perdão por tudo o que ocasionam -—, e entorpeceram Utopia. Sua
força já não era a de antes, adoecia com mais
freqüência, o que a obrigava a ausentar-se do cenário
público... e do privado.
O fatos
são fatos, é preciso ser realista — afirmação
com sentido vago, muito em moda entre vagos utopistas —, e Utopia
já não podia cumprir sua função. Ia-se convertendo
num estorvo, numa velha rabujenta. Seus filhos, Reforma e Razão de
Estado, ocuparam seu lugar. Todavia, os filhos não se comportaram como
sua mãe, mas tornaram-se ambiciosos, deixaram-se subornar, e não
agiram com justiça. A lassidão se instalou em seus aposentos,
confundiram de tal modo o povo, que este já não sabia distinguir
os meios dos fins, nem ligar as causas com seus efeitos.
Diante dessa
desordem de coisas, os sábios, os profissionais do saber, os peritos do
realismo erigiram-se em porta-vozes, dos sem voz e sem dinheiro,
apresentaram-se diante do leito de Utopia com uma coroa... de flores e um
único sorriso, para dizer-lhe:
— Tu
já és uma anciã, e teus filhos não se portam como
tu. Sabemos que ainda te resta certa autoridade moral sobre nós;
portanto, antes de te enterrarmos, integra-nos no Sistema Neoliberal para que
nos governe, como é costume em todas as nações.
—
Utopia, desgostosa diante dessa capitulação de vontades,
dirigiu-se em oração ao Senhor, mas o Senhor respondeu:
—
Atende qualquer pedido que o povo te faça, pois não é a ti
que no fundo rechaçam, senão a mim, para que eu não reine
sobre eles. E, desde que lhes dei asas para voar e criatividade para realizar o
impossível, andam atirando-se na terra e revolvendo-se na lama do meramente possível. Assim, pois, atende seu pedido; mas,
antes adverte-os seriamente sobre tudo o que terão de suportar para que
tenham por governante o Sistema.
Então,
Utopia, ergueu-se da cama e, apoiando-se em suas muletas, foi caminhando
lentamente até a sacada. Abaixo, uma multidão a esperava,
irritada contra Reforma e Razão de Estado, mas por sua vez marcada com a
influência que nela tinham deixado, esperava uma resposta que
satisfizesse suas aspirações de ser como as demais
nações. Utopia, sabendo que estas seriam suas últimas
palavras, reuniu suas últimas forças para comunicar ao povo a
resposta do Senhor e deixar claro o que era evidente. Falou-lhes:
— Isto
é o que vos espera com esse Sistema Neoliberal que vos vai governar.
Acabará com todos os vossos sonhos de igualdade: dará muito a
poucos e ao resto deixará sem nada. A competitividade se
instalará em vossos aposentos desalojando a solidariedade que até
hoje era vosso guia, e os especuladores armarão sua tenda entre
nós. O benefício econômico orientará o sentido da
vida social e privada: o que não tem um preço não
terá valor. Vossos bosques serão devorados para alimentar a
avidez madeireira das poderosas nações estrangeiras; serão
cortados para o plantio da soja de exportação e para engordar
seus porcos; perfurados para extrair o sangue negro que bombeia a energia do
Império. Vossos filhos terão de tomar o caminho do esquecimento
das terras de espelhos e ilusões, e ali serem explorados com soldos de
miséria. Muitos de vós podereis até chegar a ter algum
televisor e algum rádio, por meio dos quais vós lhes
subministrarão a realidade de cada dia e vos exorcizão o
espírito crítico. E o dia em que se queixarem por causa do
Sistema que vós escolhestes, eu não estarei aqui para ajudar-vos,
porque já me terão enterrado, e a resposta do Senhor
ficará apagada na profundidade da noite do Neoliberalismo.
Mas o povo,
sem ter em conta a advertência de Utopia, e cegos pela deslumbrante
sedução do Sistema, respondeu:
—
Não importa. Queremos ser englobados pelo Sistema Neoliberal, para ser
como as outras nações, para que nos desenvolva economicamente e
nos explore socialmente, porque mais nos apavora o isolamento que o erro. Mutilamos
nossas asas e castramos nossa criatividade neste dia como pacto de nossas
palavras.
Depois de
Utopia escutar a resposta do povo – ou do que restava dele, porque uma
opinião tão uniforme mais se parecia à massa bem moldada
que a do povo consciente e crítico – levou-a ao Senhor, e o Senhor
lhe respondeu:
—
Atende seu pedido.
Utopia
conhecia as conseqüências daquela decisão. Sua
presença, incompatível com o Sistema, tinha de cessar. Todavia,
com a certeza que dá a experiência secular, seu semblante refletia
um conspirador sorriso, porque sabia que seu maior poder se encontrava na
presença de sua ausência: quando não se encontra em parte alguma, seu nome e sua força adquirem todo o
significado pleno.
Murcia,
ESPAÑA