Agenda Latinoamericana-Mundial’2001-2002

Concurso de Conto Curto Latino-americano

Texto do conto ganhador

 

 

 

Verdes lembranças

Sergio Montes Alberto

 

Aos irmãos de El Ocotillo, que sofrem o que só eu posso contar

 

 

 

Lembro-me bem. Ainda soa em meus ouvidos o som seco e triste das lagartas do trator. Chamava-me a atenção a virilidade daquela besta amarela que, sem compaixão, triturava o que, hea 15 anos, era minha escola. Sentia que o cálcio  de meus ossos, solidariamente, saía de meu corpo e caía na fossa comum, onde dolorosamente se fundia com a madeira, com o náilon, com minhas recordações.

No começo, ninguém se importou com o que faziam nem quem eram. Talvez os mais curiosos fossem as crianças, que achavam inconcebivelmente fabulosas aquelas máquinas estranhas que pareciam falar ou se esticavam como dançarinas ao som de flautas e tambores. Alguns deixaram guardados debaixo da cama seus piões, e outras não desenharam na terra a boneca que, generosa, abria suas mãos para que as meninas saltassem quais pequenas lebres.

Há poucos dias, começou, sem nos darmos conta, o caminho de nosso calvário de miséria esquecida. Era-nos difícil crer no que nossas pupilas, carcomidas pelo tempo e pelo suor, estavam observando.

Chegaram os engenheiros com seus títulos de mestres, ostentando um ar de indiferença para com nossa pobreza. Escapava-lhes pelos poros uma mescla fétida e putrefacta de mansão e crachá, de celulares e madeira, de golfe e jogo da raia, de morte e de vida. Instalaram seus aparelhos tecnologicamente.  Proféticos, prediziam-nos outro lugar, e nos descreviam a terra prometida, onde brotaria leite e mel, onde as águas seriam límpidas como a que sai dos garrafões de água mineral, comprada com afã pelos ricos no “American market”.

Sem mais alternativas, tivemos de acreditar, porque, quando se vê o caminho ficar escuro, não resta outra alternativa senão apegar-se a alguma coisa que mantenha viva a esperança.

Há uma luz, dizia à minha menina, a menor, que começara a falar, e que me via sonhar alto. Ela, porém, pôs-se a chorar e eu não suportava ver aquilo.

Sinto um calafrio que percorre as escassas fibras de carne que teimam em se agarrar a meus ossos, mas isso pouco importa. A esta altura, nesta terra abandonada por causa dos monturos, só valem as recordações. Estas sim, ficarão sempre costuradas à minha memória com fios de saudade. Vejo uma e outra vez meus sete pequenos que, indiferentes à quota duzentos e ao dano ecológico,  continuam pulando corda. Suas feições já não são as mesmas que tinham em “Merendón”. Agora vivem tristes, com seus pensamentos em outro lugar. Talvez seja por causa das doenças que devoram sem piedade suas vidas, ou, quem sabe, sou eu, que penso estarem diferentes. Ou, talvez ainda, seja a mim que destroem as lembranças.

Vi os caminhões que surgiam barranco abaixo e, assim mesmo, não queria acreditar, mas era verdade: já tinham derrubado o barraco do Lupe García e três homens de azul municipal  carregavam o cadáver. A bondosa senhora ajudada por seus filhos, trepava com dificuldade no caminhão, onde já haviam empilhado seus trastes. Sucedeu a mesma coisa ao Toninho Ramírez, à Tencho que nos deliciava às tardes com seus gostosos chocolatinhos. Com todos foi a mesma coisa, sem escolha. Fomos espoliados.

Erroneamente,  pensávamos que se cumpria a vontade de Deus, mas era outra força terrena que nos era imposta. O chefe da quadrilha e o militar de esmagadoras botas me indicaram o veículo que deveria ocupar. Ajudado por dois jovens de corpos robustos, carreguei o que pude, e lá estavam as lagartas destruidoras que aniquilavam a grandeza de minhas humildes tábuas. Toñito ajudou-me a subir. Tomei em meus braços a menor, a que mais quero, e me deixei cair, com o olhar absorto naquelas montanhas que nunca mais tornaria a desfrutar. A palavra golpeou meus ouvidos com a força e a dor de um projétil que magoa, ao alojar-se na inocência de uma testemunha; foi a palavra que vagaria em minha cabeça buscando ser assimilada, foi o nome infernal. Alguém disse: “chegamos a Ocotillo”.

Faz muito frio. Começaram as chuvas, e o sol aparece fraco. Parece cansado, como os que vivemos nestes rincões. Creio que o frio vai-me matar. Esse pensamento, de certa maneira, me alivia. Mas ontem parecia a mesma coisa: quando pensava que ia morrer, voltava a viver esta vida. Ontem não voei: desfalecia na dura enxerga. Ainda fazia parte das coisas terrenas. Estava cravado a este pesadelo. Hoje é diferente. Quando chegamos, revoluteavam em nossas mentes verdes esperanças. Instalamo-nos como pudemos em nossas casas de cimento. “As prisões também são de concreto”, disse-me alguém, e tinha razão.

Foi ali que começou nossa primeira estação. Condenaram-nos à morte, sentenciaram-nos a não ter água potável, a não ter privadas, a não gozar de energia elétrica, a não ter pão. Ainda tenho frio.

Procurei trabalho. Custou-me achar porque já não contratam velhos, e muito menos se são professores. Dizem que trazemos idéias esquisitas, como igualdade e coisas assim... Empregaram-me numa fábrica de muito prestígio, embora não entenda por que a fama, uma vez que os salários são tão miseráveis, que a lei os chama de mínimos; e esse qualificativo lhes cabe muito bem. A comida era cara. Pagava condução. Pouco me sobrava. Tínhamos é bem verdade uma associação de solidariedade que era muito nossa, mas por não sermos “capazes” era manejada pela empresa na “administração adequada dos recursos financeiros”. Enchiam-nos de dívidas como aos papos das aves — sim porque éramos considerados animais —; até para comprar um humilde par de sapatos, tínhamos que nos endividar.

Creio que o prestígio estaria em outras coisas: talvez na produtividade, como dizia o engenheiro Donald, que nos convencia com o argumento indiscutível de nos mandar embora. Ele sim é quem tinha respostas para tudo. Teria sido um político de êxito, porque nos fazia crer que era boa coisa desvelar-nos, trabalhando doze horas, de segunda a domingo. Era saudável, dizia. Suponho que ele não necessitava daquelas medidas terapêuticas, porquanto só ia de dia à fábrica, e aos sábados muito cedo ia para sua “humilde”  casa de campo, no Condomínio São Paulo. Penso que Paulo devia-se sentir mal com a opulência dos condôminos que pretendiam reconfortar suas almas, morando em vilas com nomes de santos, quando suas ações eram sinais visíveis de sua infidelidade  a Cristo pobre. O engenheiro era, de fato, extraordinário. Lembro-me de quando despediu o meu compadre Juancho. Surpreendeu-o cometendo o mais grave delito que um ser humano podia fazer ao negócio do patrão: roubar para seus filhos uma porção do produto que a fábrica, com todo o amor do mundo, preparava para seus apreciadíssimos clientes. Como compadre! Que ousadia roubar de um ladrão! Eu caí muitas vezes nessa tentação, porque meus filhos comiam pouco: alguns grãos de feijão era a dieta forçada, salvo quando era dia de pagamento; aí sim é que era um banquete, até ovos e “tortilhas” comprávamos. Mas o pagamento saía às sextas-feiras e as crianças não entendiam nada de dias da semana. Por isso, numa quarta-feira, morreu-me o Panchito. Amanheceu encurvadinho, com os olhinhos arregalados, como fixando a vida para que esta não lhe escapasse. Mas sua fina pele não pôde com a força da alma que buscou outro lugar, em outra parte.

Nesse dia, chorei muito. Creio que fiquei sem lágrimas, porque quando a maior dos sete também morreu, não havia mais pranto em meus olhos cansados.  Teresita queria ser doutora, dizia a brincalhona menina de cabelo cor de ébano.

Odiava a todos, pedia a Deus que me levasse a mim, que já havia andado pela vida, mas que deixasse ficar meus filhos, que o mundo tinha de mudar, que a venda de muitos tinha de cair, e eles os inocentes, os que brincam, os que agora morrem, deveriam ter vida, deveria haver um espaço digno, nesta siociedade...

Mas meus pedidos não foram ouvidos. Morreu o terceiro. Uma pneumonia o matou. Chovia apocalipticamente, e o menino com suas cabaças dispôs-se a trazer água do poço que nos tinham construído. Parece mentira, mas três horas sob o aguaceiro junino acabaram com o esquálido pequenito. Devia seu eu, mas os caminhos do Senhor são inexplicáveis, dizia-me o padre espanhol que veio em seu carro de luxo celebrar a missa de domingo. É muito fácil consolar, quando a vida não nos golpeou tanto, quando bem acomodado na cálida paróquia, vê-se a pobreza como um mal que deve acabar, enquanto se toma o chá matutino, antes da recitação das “Laudes”. Deve-se viver a intensidade do evangelho, dizia eufórico o padre, enquanto meus filhos, sem entender a profundidade da mensagem, choravam pelo irmãozinho que tanto nos fazia rir com suas piruetas.

Logo veio o pior. O engenheiro Izaguirre não entendeu minha dor. “Precisamos  de bons trabalhadores, que acudam religiosamente ao trabalho, que disponham totalmente do seu tempo, que deixem seus problemas em casa...”, dizia-me, após haver-me citado o artigo cem, que significa “morte” no código dos patrões.

Estar sem sorte no jogo é duro, porque a fome não espera, multiplica sua força, enquanto devora os motivos para continuar existindo. O ar golpeia suavemente meu rosto, sinto que o sangue corre devagar por minhas veias, deixando-se levar de um lugar a outro pelas escassas forças que meu débil corpo ainda hospeda; a fumaça do lixão municipal quase me cega. Um grupo de crianças busca desesperadamente algo que possa servir em seus miseráveis casebres. Qualquer coisa é boa, quando não se tem nada, embora as conseqüências saiam caros. Mesmo que seus pés nus sangrem nos ponteagudos entulhos, a recompensa pode significar um dia de boa comida, embora seja um dia de comida.

Faz três meses que vagamos como fantasmas pelas ruas asfaltadas da grande cidade. Ao anoitecer, voltamos com as escassas moedas que a sociedade nos dá. Minha mulher não pode mais levantar-se. Tentou várias vezes, mas as dores são mais fortes que sua vontade. A enfermeira que nos assiste graciosamente explicou-me que nosso corpo é fraco. Fez-me uma comprida exposição das causas científicas de sua debilidade, flacidez e impotência,fraqueza e quis convencer-me disso. Mas eu sei que ela está assim porque deixou de comer para não faltar alimento para as crianças; o que eu entendo é que está dando sua vida por eles, e que eu nada posso fazer.

Acontece algo fora do comum. Já quase não sinto frio, embora esteja esfriando. Densa neblina começa a cobrir a imensa lagoa negra, onde vão parar as imundícies do casario. Já não vejo o Ocotillo. O vento me levou para longe. Talvez  seja meu desejo, pois que estranho os negros cabelos e a pele grossa de minha filhinha, a que mais quero, e vejo como numa miragem minha amada cordilheira... Mas há algo diferente em suas faldas. Meus olhos não podem acreditar, mas é verdade, e se aclaram ruas de cimento com luxuosas luminárias, uma e outra imensa mansão, com suntuosos telhados e belas paredes. Vejo um grande outdoor que anuncia a venda de lotes de muitos metros quadrados. Mal posso reconhecer o lugar onde vivia: máquinas e homens constroem com lindos terraços o que será outra casa, que nada terá a ver com a de minhas recordações. Tudo aquilo me faz chorar. Mas a transparência das lágrimas não brotou de meus olhos. Eram lágrimas cheias de cor, de um verde intenso que no ar iam adquirindo forma, sofrendo uma metamorfose que recompunham minha vida, transformavam-se em verdes esperanças que renasciam em outros lugares. Agora me dou conta de que o vento não me traiu, levou-me em minhas fracas asas para chorar aquela realidade e inundar de verdes lembranças o Merendón.

 

Sergio Montes Alberto

San Pedro Sula, Honduras

 

Merendón: cordilheira que rodeia o vale de Sula, em Honduras.

Ocotillo: conjunto de casas da periferia, construído pela Prefeitura de San Pedro Sula, Honduras, — para onde foi transferida grande parte das famílias que moravam no sopé do Merendón.